terça-feira, setembro 30, 2008

Homens e bichos (XI)

Quando a Maria se foi embora, não senti logo dor. Primeiro pensei que em breve voltava, mas os dias passaram e não tive nenhuma notícia dela. E à medida que me faltava a sua voz ao telefone no final da tarde, a mão dela junto da minha nos passeios de sábado de manhã, o aconchego do seu corpo nas noites de fim de semana, à medida que a sua falta se ia fazendo vazio, fui ficando cada vez mais triste. Quando ela estava pouco dava por ela, mas agora sinto-a como nunca senti e dou-lhe razão nos protestos que fazia. As rosas vermelhas que lhe dava no seu aniversário, por exemplo. Lembro-me quando me perguntou porque é que lhe dava todos os anos o mesmo presente e da minha resposta atordoada, como um menino apanhado em falta. Uma resposta porque sim, porque tu gostas, enquanto ela me fitava com os olhos mais tristes do mundo.

E hoje, hoje posso dizer-vos que consegui finalmente chorar. Chorei primeiro devagar e depois convulsivamente, como se uma onda me arrancasse do chão e me levasse com ela num turbilhão, depois vieram os soluços e quando finalmente me tinha acalmado, vi a pomba branca na janela a olhar para mim. Tinha lá estado durante todo o tempo do meu choro, todo o tempo a olhar-me.
~CC~

segunda-feira, setembro 29, 2008

Quando os adultos jogam ao monopólio...

Quem é que, na infância ou na adolescência, não teve um amigo que o convidou para numa tarde de Verão ou numa noite grande de Inverno abrir o tabuleiro colorido do monopólio? O jogo era quase interminável e na maior parte das vezes só a contagem das propriedades e do dinheiro permitia decidir o vencedor, mas era um desafio que já mostrava alguma coisa do que cada um queria e podia ser. Eu nunca ganhei um jogo, e odiava ver quando alguém perdia tudo e ficava assim sem nada, sem dinheiro para pagar quando parava na propriedade dos outros, já nessa altura o jogo não me despertava grande entusiasmo.

Para a maior parte de nós foi a iniciação ao capitalismo, ainda assim uma coisa tão inocente comparado com o que sabemos hoje dele. As casas e os hotéis, mesmo de plástico, tinham existência, não eram papel fantasma a fingir de coisa valiosa. Os adultos que jogam hoje ao monopólio são quase como as crianças que fomos a querer ganhar o jogo comprando a rua Augusta e a rua do Ouro. Mas como não são realmente crianças são afinal perigosos, alimentam a sua vaidade e ganância com o sangue de todos os vulgares cidadãos que do capitalismo só conhecem os juros enormes cobrados pela banca no crédito à habitação.

Nós somos as presas fáceis, aqueles que ficam debaixo dos escombros no final do desabamento, nós somos os tontos e as verdadeiras vitímas do capitalismo selvagem que grassou por todo o mundo como uma nódoa num tecido. O que sobrou fora do capitalismo também não é coisa que se mostre a ninguém, meia dúzia de países com prateleiras vazias e masoléus ao chefe máximo. E apesar da indignação que corre o mundo, não há nenhum gestor (desses que ganham num mês o que não conseguiremos ganhar numa vida) responsabilizado ou acusado, muito menos algum será preso.

Perguntamos pelo futuro, agora que no fim do jogo do monopólio, não podemos ir lanchar como acontecia quando éramos crianças. E não há ninguém na política a construir outro futuro, a rasgar no seu discurso novos horizontes para a economia global. O que me assusta não é a crise, é não haver dentro dela esperança para um outro modelo de mundo.
~CC~

sexta-feira, setembro 26, 2008

luta


Há dias em que a vida de alguém se pode definir pela forma como se procura libertar do escuro, um escuro sombra, um vampiro ávido por roubar alegria. Sim, há dias em que a minha vida olhada como um caminho é isso, só isso. Eu a fugir-lhe por todas as janelas, eu a rodear-me de amor como uma armadura, eu a embalar uma criança, eu a proteger-me dentro das pedras, eu a trabalhar até à exaustão, eu a rir, a dançar, nua deitada nos teus braços, viva nos aplausos de uma plateia, feliz. O vampiro à espreita, sempre ali, à espera daquele momento em que vem e me abraça, sufoca-me, rouba-me o riso. Esta luta nunca acabará?!
~CC~

quinta-feira, setembro 25, 2008

Homens e bichos (X)


Maria: Sabes, vi um filme em que uma mulher ama um homem mau, ela sabe que ele é assim e que nem sequer lhe promete mudar. Eu não era capaz de amar um assassino.
João: Andas a ver filmes estranhos.
Maria: Mas era capaz de amar um homem mau que quisesse deixar de o ser, um assassino que se quisesse recuperar, que quisesse mudar.
João: Pois, pois, compreendo.
Maria: Tu não és mau nem és bom
João: Eu? Mas o que é que eu tenho a ver com esse filme?!
Maria: Tens, tens. Descobri que não te amo, espera, vou traduzir para ti: descobri que não gosto de ti.
João: Não estou a perceber nada do que dizes. O que queres afinal?
Maria: Quero ir-me embora, deixar-te finalmente!
João: Mas assim sem razão nenhuma? Não há nada que eu tenha feito, não estou a ver o porquê desta tua atitude agora.
Maria: descobri, descobri-me! Deixei de ser a menina que ia contigo à procura de tesouros!

~CC~



quarta-feira, setembro 24, 2008

Praxes

Elas chegam todos os anos, pior que uma praga. Aqui não são bem vindas, os docentes não gostam delas e por isso demoraram a chegar, mas acabaram ano a ano por ganhar terreno. As salas ficam vazias e os corredores e os jardins enchem-se de berros, cantorias patetas e palavras de ordem que nada manifestam. Os estudantes mais velhos parecem corvos pesados a bater com as asas nos pintasilgos, dizendo que essa é a melhor maneira de os acolher no novo ninho, e cada vez são menos os que duvidam dessa intenção.

Eles dizem que as praxes não são violentas, por aqui têm fama de ser doces. Mas nos últimos dias já vi veteranos sentados no bar enquanto os caloiros os serviam como criados e muita gente jovem estranhamente de joelhos se arrastando pelo chão, julgo que há melhor modo de o lavar. Não há praxe sem violência, ela alimenta-se sempre do poder dos mais fortes sobre os mais fracos, tem no seu cerne a humilhação do outro.

Sobrevivemos medindo forças, contamos os que apareceram e as aulas que se deram. Comecei bem o dia, logo às 8h30 da manhã tive sala cheia. Avancei vitoriosa pelo dia dentro até ao início da tarde. Apareceram umas meninas pintadas e roucas que tive dificuldade em reconhecer, abri os olhos de espanto para dar nome à que vinha à frente do grupo para falar comigo: era de facto uma das minhas melhores alunas do ano passado. Vinham explicar-se, não me queriam deixar na sala à espera dos alunos porque acham isso feio e indelicado para com os professores, pelo menos percebem isso, já não é mau de todo. Atrás delas traziam um caloiro sorridente que não abriu a boca e contaram meia dúzia de histórias dos novos alunos. Lá lhes disse que já não era mau se terem conhecido uns aos outros, mas que me parecia que isso também era possível sem praxes. Mas estavam felizes, nem me ouviram, não queriam saber para nada das minhas reticências.

Há quem goste de empates, não é bem o meu caso, gostava mesmo que as praxes acabassem e gostava de hoje cantar vitória. No entanto sou contra a proibição como aqui e ali vai soando como uma necessidade, só queria que os estudantes percebessem que não precisam delas.
~CC~

terça-feira, setembro 23, 2008

Homens e bichos (IX)



Sei que te pareceu bonita a forma como eu, ainda menina, me apaixonei por esse rapaz que buscava tesouros. Mas a beleza acaba aí, quando crescemos, nada sobrou desse encanto. Queres que te diga como começou o nosso namoro? Fomos para um campo de trabalho de Verão, ajudar na recuperação de umas ruínas romanas que estavam fechadas ao público. Quando o trabalho terminou, um grupo ficou mais uns dias por alí. Eu e ele dormimos na mesma tenda, ele chegou-se a mim durante a noite, chegou-se mais e mais e eu fui com ele embalada naquelas carícias tão pouco habituais entre nós. Na manhã seguinte perguntei-lhe se gostava de mim e ele disse, desviando o olhar para um canto qualquer: gosto, claro que gosto. E assim estamos, desde há sete anos atrás. Não, nunca mais lhe perguntei nada, muito menos ousei alguma vez pronunciar a palavra amor, tive sempre medo de parecer ridícula, de lhe parecer ridícula.


~CC~

segunda-feira, setembro 22, 2008

Equinócio

São quarenta e quatro equinócios, quarenta e quatro vezes o Verão a despedir-se e o Outono a chegar, descontados dez, passados do outro lado do Equador. Sei que o calor não se vai, guardo-o, assim vindo de tantos cantos amigos.
~CC~

sexta-feira, setembro 19, 2008

Homens e bichos (VIII)

Perguntas-me porque escolhi o castelo de Almourol?! Primeiro tenho que dizer-te que desde que acabei Arqueologia há cinco anos atrás que ando de estágio em estágio profissional e por este andar acabarei a carreira como estagiário profissional. Dito assim, compreendes que havia este lugar e que cá vim parar.

De resto escavo desde criança, ando sempre à procura de alguma coisa e qualquer resto de loiça com mais de 2000 anos já me faz feliz. Dou-me bem com o que resta dos homens, melhor com as suas memórias do que com a sua presença. Digo-te mais, Almourol é capaz de ser um dos únicos castelos virgens que nos resta. Está livre de cafés, de lojinhas de imitações de objectos antigos, das pousadas de portugal e animações de todo o genéro. Aqui minha querida, não se dança nem se canta, não se come nem se dorme, aqui só há a pedra e o rio. De vez em quando chegam umas quantas pessoas, mas poucas e só mesmo no Verão. O barqueiro tira-lhes uma fotografia com o castelo por trás e já ficam felizes, de resto nunca demoram mais de meia hora, isto é uma ilhota perdida no meio do Tejo, onde só os mais loucos se poderiam lembrar de fazer um castelo.

Eu estou bem aqui, não tenho saudades de quase nada, às vezes lembro-me da Maria, mas já estamos juntos há tantos anos que mesmo sem estar com ela, é como se estivesse. Para mim, isto seria o Paraíso, não fora a pomba branca. Já estive em algumas escavações, mesmo antes de acabar o curso e obviamente que as pedras velhas estão cheias de histórias e lendas, sei isso muito bem. Mas nunca, nunca alguma vez, nem nos meus piores pesadelos, me imaginei a falar com uma moura disfarçada de pomba branca. Se me contassem, eu também não acreditaria, por isso compreendo-vos, mas ela existe, posso assegurar-vos.
~CC~


quinta-feira, setembro 18, 2008

Queridinha...

Trata-me por queridinha mal entro, embora depois me pergunte: como é mesmo seu nome? Mas depressa ela se lembra que embora seja cliente pouco habitual eu mereço igualmente a sua doçura e vai dizendo: nossa, que bom ter vindo e vai ficar linda. Depressa me esqueço que me tortura porque em função desse: nossa amor, você parece outra, toda a dor é na verdade infíma.

Antes do sector manicure pedicure e outras torturas mais ser tomado por aquelas jovens e lindas brasileiras, raramente eu ia lá ou a outro sítio qualquer. Agora sim, vale a pena. No final ela vai buscar o creme e faz uma massagem pelo rosto, e embora isso nada acrescente a ter mais ou menos pelos, adormece-me para o resto do dia, arrasta-me num torpor de país de sol. Mas há mais, ela pergunta-me: unha meu bem, vamos tratar dessas suas unhas? Eu ai reajo com alguma impaciência pois de repente tudo me parece hipocrisia pura e eu não sou queridinha coisa nenhuma. Penso: mas será que apesar de estar aqui deitada há quase meia hora nesta marquesa de beleza, ela não viu as minhas unhas roídas?

Roídas é um termo ligeiro para o bocadinho de unha que me resta em cada dedo. Protesto pois com ela: mas eu não posso arranjar as unhas, não vê como estão? Pois, queridinha, não tem problema, a gente faz assim mesmo, arranja só uma pelezinha de lado e arredonda e aí já vai ficando mais bonita, você vai gostando e vai deixando de roer. Vou respondendo incrédula: talvez, talvez volte outro dia, também há quem diga que se puser unhas de gel também resulta. Queridinha, unha de gel não é bonito, é coisa grosseira, unha não há como a sua!

E saio a pensar: Queridinha, um dia eu volto, você sabe mais de Psicologia que muitos dos professores que me deram aula no curso. E na verdade sinto-me linda.
~CC~

terça-feira, setembro 16, 2008

Homens e bichos (VII)


Perguntas-me quando é que o conheci? Ele era um rapazinho e eu uma miúda. Nesse tempo usava galochas cor de rosa com flores, era moda, mas não as usava só por por isso. Saia da escola e desviava do passeio pelo terrero baldio, enfiando os pés em tudo o que era poça de água, isto durava todo o outono até o Inverno alagar tanto a terra que não podia mais fazê-lo. Talvez não acredites, mas nesse baldio havia um ou dois moinhos de água abandonados, eram do tempo em que o Tejo era um outro rio. Encontrava invariavelmente esse miúdo junto aos moinhos, ficava parado a ver-me até eu passar bem ao largo. Não percebia o que fazia ali sozinho, o filho do moleiro é que não podia ser.

Um dia acenei-lhe e sorri e ele correspondeu com um aceno, mas sempre sério. No dia seguinte tive coragem e perguntei-lhe porque é que depois da escola ia sempre para ali. Disse-me: ando à procura de um tesouro! Quantos rapazinhos conheces que aos oito anos gastem o que resta das suas tardes à procura de tesouros? No dia a seguir eu também já era uma caçadora de arcas de oiro, sonhava encontrar os colares e os brincos de pelo menos uma dúzia de princesas.

Quando penso nisso hoje...como é que se procuram tesouros debaixo das pedras de um moinho? Nunca mais nos separámos, só ele é que me chama Maria, mais ninguém, é o que o meu nome é Mariana, mas ele disse-me logo que esse não era um nome real, por isso aqui me tens, feita rainha do nada. Desde que ele arranjou emprego nesta escavação que o meu vazio aumentou na proporção da loucura dele.


~CC~

segunda-feira, setembro 15, 2008

Ler(vos)

Há muito que os leio sem lhes prestar a devida homenagem, como sabem os meus gostos nem sempre são iguais aos das referências que vejo tantas vezes repetidas na estante dos notáveis, os notáveis são e sempre serão os que me cortam o coração com a sua beleza, um critério assim como outro qualquer. Agora ali, ao meu lado, mais perto ainda.

Com a Claúdia, chega um outro azul, uma brisa da tarde a correr intensa por dentro.
http://bluemolleskin.blogspot.com/
(sei que vive algures, imagino-a no campo, junto a um rio)

Com o JRMarto, a poesia habita cada coisa simples para a transformar numa outra, numa outra em que a sua luz se inscreve.
http://vaandando.blogspot.com/
(conheci-o sentado a uma mesa na cidade onde moro, sei que Lisboa é por ora a sua cidade, veio por mãos amigas)

Com a Clorinda, chegam palavras e imagens que colecciona com habilidade e gosto, um caderno para aumentar o nosso reportório e enriquecer o quotidiano.
http://clo-carpediem.blogspot.com/
(sei que nasceu em Trás os Montes e que vive no Porto, sei que virá um dia para um café)

Com a Girafa cor de rosa chega a frescura de quem faz da esperança um modo de ser
http://xm-girafadepatins.blogspot.com/
(não sei onde nasceu, sei que mudou do Norte para o Sul e que agora está perto, sei que um dia aparecerá por aqui ou eu por lá).

Com o Eurico, chegam ecos de romances que já li e de lugares onde estive ou quero estar. Os seus saberes múltiplos espelham-se em imagens, em música, infiltram-se na sua poesia.
http://cantodosul.blogspot.com/
( sei que vive no sul, vi-o pelo menos uma vez, na casa que fica junto à ria formosa, é amigo dos meus amigos e família do sul).

Com a Deep chegam ecos de quem ama a vida no seu quotidiano a norte e escreve em caderno com giz de terra e com música
http://amaroinfinito.blogspot.com/
(sei que vive no Norte e só podia ter vindo através de afinidades T-O-M).

Este Verão, na minha estante dos privados, chegaram duas meninas grandes, juntando o amor à admiração pelo modo como se dizem gente.

http://minhasmaravilhas.blogspot.com/
http://pinosetokiohotel.blogspot.com/

Um prazer viver na vossa companhia.

~CC~

domingo, setembro 14, 2008

A escola

O regresso à escola acontecia dentro de uma saudade violenta que ocorria depois de quase três meses de férias. Tudo já se tinha feito ao tempo e a chegada de um entardecer mais frio era o aviso de que a vida ia mudar. Mais do que os cadernos, os livros, o regresso da rotina e da regra, o que nos trazia alegria era a ideia de que os amigos da escola estavam à nossa espera no mesmo lugar onde há pouco tempo os tínhamos deixado.

Agora, com AF., descobri que pode já não ser assim, ao fim de um ciclo de ensino, uma turma pode ser desfeita sem que se tenha que dizer porquê. No final da escola primária foi a dolorosa e difícil escolha de "seis amigos com quem ir" e agora no final do 2º ciclo não há nem deixa de haver escolha, constata-se pela pauta que a turma se desfez. Alguns amigos estarão à espera e outros deixarão de estar, sem que as crianças e os jovens tenham tido sobre isso algum controle, o que é bem diferente de uma amizade se poder desfazer naturalmente ou por força de circunstâncias compreensíveis. A esta interrogação que temos sobre o que a escola faz, alguns chamarão a perigosa intromissão dos pais na educação. Não me parece, eu sou também da escola, e mesmo que não o fosse hoje, já tinha sido um dia, todos o fomos, a escola é de todos.

Pergunto também pela minha saudade, ela chega-me atenuada e creio saber porquê, as férias foram demasiado curtas para poder sentir muita vontade de voltar. No entanto, há dentro de mim ainda deslumbramento pelo que faço, é um brilho que vou encontrando à medida que o ano avança e sei quanto pode ser intenso.

Mas por estes dias penso sobretudo em S e em L que começam o 2º ciclo, penso no que sentirão face à enorme mudança que chega à vida delas e penso em AF que começa o 3º Ciclo e cujo horário só lhe deixa duas manhãs livres. Por estes dias penso nestas crianças crescidas, nestas minhas crianças.
~CC~

quinta-feira, setembro 11, 2008

Homens e bichos (VI)

R - Joana, diz-me lá, tu falas com as tuas bonecas?
J - Claro tio, e elas também falam.
R - Então porque é que eu não oiço o que elas te dizem?
J - Porque é só para mim que falam, tu não podes ouvir.
R - Vou contar-te uma história, uma lenda
J - Conta, conta, tu nunca me contas histórias!

(Depois de contar a lenda do Arripiado a Joana, coisa que ela ouviu de olhos bem arregalados)

R - Sei que acreditas que esta pomba fala como as tuas bonecas, mas agora diz-me...ela já não devia ter morrido há muito?
J - Mas ela não pode morrer enquanto não encontrar de novo o seu amor, só aí é que ela vai descansar para sempre
R - Mas ela diz que não pode voltar a ser mulher, a ser moura
J - Tem que haver uma solução, ela vai encontrar, vais ver. As mouras sabem muita coisa, eu acho que elas ainda sabem mais que as princesas vulgares.

~CC~

domingo, setembro 07, 2008

Diálogos com os santos

Falo baixinho e longamente com os santos de pedra sem nome que moram em jardins anónimos. São bons e doces para os corações aflitos.
~CC~

Homens e bichos (V)

R- Mãe, mãe...está a escutar-me? Vou no Domingo, faça o seu cozido à portuguesa
M- Quem diria meu filho, em criança não gostavas nada desse prato! Vai cá estar a tua irmã e as duas miúdas dela.
R- Tenho saudades das miúdas!

(Fiquei a pensar nas minhas sobrinhas, talvez nelas estivesse a chave do mistério, afinal as crianças também falam com os bichos. Se calhar elas compreenderiam que na minha última semana quase todos os meus diálogos tivessem sido com uma mulher moura, disfarçadada pombra branca).
~CC~

sábado, setembro 06, 2008

Homens e bichos (IV)

Quinta abandonada. Santarém. Agosto 2008.


P - És bonito como ele era.
R - Bonito, eu? Nunca ninguém me disse tal coisa.
P - Tens uns olhos com muita luz, mas não sabes.
R - E como é que são uns olhos com luz?
P - Olhos que podem voar.
R - Tens uma conversa estranha para uma pomba.
P - Mas eu sou uma mulher!
R - E quando é que deixas de morar no corpo de um bicho? Não me digas que é quando te apaixonares...
P - Não, nunca mais poderei voltar a ter corpo e rosto de mulher.
R - Então nunca nos poderemos encontrar, se é assim porque vens aqui falar comigo, porque é que me tentas encantar...ou mesmo enlouquecer.
P -É por ti que o faço, pela luz dos teus olhos.
R - Vai-te embora, vai de uma vez, não venhas mais aqui falar comigo.
P - É mesmo o que queres? Então vou.
(...silêncio do rapaz)

R- Não, não vás ainda...preciso de descobrir qual é o teu mistério.

(no momento em que o rapaz disse estas palavras e disse-as tão baixinho, já a pomba tinha iniciado o seu voo e por isso não sabemos se as ouviu)

~CC~

sexta-feira, setembro 05, 2008

Homens e bichos (III)

rio Tejo, Agosto 2008

R- Estás a ver ali do outro lado do rio? É ali o Arrepiado, a aldeia da lenda de que te falo.
M - Parece-me muito bonita, já lá foste?
R - Fui ao cemitério ver se lá estava a campa do cristão que Ari amava, mas não vi nada.
M - Já a devem ter tirado, já foi há muito tempo, mas toda a gente conhece lendas de mouras encantadas, a tua pomba é só uma delas.
R - Maria, mas como disseste é uma lenda, por isso não faz sentido o que me está a acontecer.
M - Talvez ela tenha reconhecido em ti o seu grande amor, o rapaz cristão de quem o pai a separou para a encerrar ali na torre.
R - Queres ajudar-me ou pelo contrário, queres enlouquecer-me ainda mais?!
M - Enlouquecer-te claro, há lá coisa mais bonita que enlouquecer um homem. Mas acho que a pomba está a tratar disso por mim.

~CC~


quinta-feira, setembro 04, 2008

Homens e bichos (II)

Barqueiro do Castelo de Almourol. Agosto 2008

R-Há quanto tempo anda aqui a trazer pessoas para o castelo?
B - Olhe, comecei tinha só 12 anos, quando acabei a primária, vim ajudar o meu tio. Mas nessa altura havia muito mais gente, agora o movimento é pouco, mesmo no Verão.
R - Por isso é que tem esses patrocínios?
B- Ó amigo, é o que me vale. Mas o barco é da autarquia.
R - Não percebo isso lá muito bem, mas estou interessado num outro assunto.
B - Então diga lá qual, estamos aqui é para os clientes! Quer uma foto?! Há ali um lugar muito bom para as tirar, quando o barco dá a volta e as pessoas ficam enquadradas pelo castelo.
R - Deixe lá isso da foto, eu ando aqui é em trabalho. Você já ouviu falar na pomba, numa lenda de uma moura?
B - Mas é claro, todos a conhecemos.
R - Mas conhece a lenda ou a pomba?
B - Homem, então não são a mesma coisa? É a lenda da moura-pomba.
R - Sim, mas já viu a pomba? Já falou com ela?
B - Ver já vi que anda sempre aí, e é única, não há mais nenhuma, mas comigo nunca falou. Oiça lá, você nunca usa chapéu?
~CC~

quarta-feira, setembro 03, 2008

Homens e bichos (I)

Castelo de Almourol, Agosto 2008


P- Rapaz, porque me olhas tão intensamente?
R- Porque estás aí parada há muito tempo a olhar para mim
P- Porque mexes no que não deves, essas pedras não são para tirar daí.
R- E porquê?
P- Porque debaixo delas está há séculos escondido o meu diário.
R- O diário de uma pomba?!
P- Disseste mal, é o diário de uma moura, de nome Ari.
R- Mas tu és uma pomba, a pomba mais branca que já vi e com os olhos mais pretos.
P - Pareço uma pomba mas sou uma moura, sou desse tempo.
R- Qual tempo?
P- O tempo em que as pessoas se podiam transformar em animais e vice versa.
R - Mas esse tempo nunca existiu e se existiu porque é que acabou?
P - Existiu sim, mas acabou. Os homens viviam perto da natureza, em comunhão íntima, por isso podiam transformar-se, não eram reinos diferentes, como são hoje.
R- E como se conseguiam transformar?!
P- Por um sentimento, uma emoção ou um desejo intenso.
R- Só assim?!
P - Sim
R - Isso é impossível, não é verdade.
P - Mas então porque é que estás a falar com uma pomba? Isso é impossível.

Se quiser saber mais:

terça-feira, setembro 02, 2008

Coisas pequenas

Chamou-a para ver o que tinha riscado. E ela riu, feliz com aquele gesto tão doce.

~CC~

segunda-feira, setembro 01, 2008

Despedida

É Setembro, mês de entristecer com os fins de tarde de vento gelado na praia. É Setembro, lugar de partida dos almoços ruidosos de fato de banho e chinelos em torno do peixe fresco e das sobremesas vermelhas. Fecham-se as casas de praia, lavam-se as toalhas, traz-se um casaco para a noite. É Setembro, encerram devagar e pouco a pouco as festas nos castelos, nas praias, nos jardins, o jazz no coreto. Poderia morrer em Setembro com esta tristeza que é o Verão a terminar, não fora ter nascido neste mês. Concentro-me na alegria que pode sobrar.

Este é o mês das sementes a tentar absorver o máximo de água e o que sobra do calor do sol para poderem emergir, sair da casca. Nas mãos gretadas e de unhas amarelas que as deitam ainda à terra, nas máquinas que as cospem a toda a velocidade, há a esperança que possa haver vida num pequeno nada. É em Setembro que se colhe ao mesmo tempo que se semeia, que as uvas chamam as abelhas ao mesmo tempo que os passáros tentam roubar as sementes aos agricultores e eles os espantam com bonecos que parecem homens. É a vida a romper debaixo da terra, mesmo que o vento teime em levar as folhas.

~CC~