quinta-feira, julho 16, 2009

Abraçar a brisa quente



Os meninos faziam grandes covas na areia, um bocadinho longe do mar, não obstante ser mar manso, capaz de inundar sem destruir. E esperavam e desesperavam pela ordem de entrada nas pequeninas ondas, presos do mito da digestão. Mais à frente um grupo, com idades entre os três e os cinco, atribuia namoradas como quem tira rifas, e todos riam do visado, como se ter namorada fosse a maior das bençãos mas também a maior das vergonhas. E um menino solitário trazia pela mão uma boneca a quem dava banho no maior dos cuidados, um menino diferente de todos os outros.


Mulheres e homens parados à beira mar, em grupo conversando ou sozinhos, arrepiavam-se pelo frio da água, mas não desistiam de mais uma tentativa para entrar. Que magia tem um banho de mar?


Duas adolescentes passam rente à espuma rumo a um passeio até ao molhe mais adiante, são bonitas, mas uma delas é mais gordinha e tem mais curvas e curiosamente é para ela que os rapazes mais olham. No café reparo numa ainda mais gorda, para essa ninguém olha, mas não sei se ela se importa, deleitada que está com o seu gelado. Ao lado dela o irmão mal se distingue do liquído do calippo morango que o cobre.


Esqueci-me do meu livro no banco de pedra onde me sentei a calçar os chinelos, volto atrás um pouco depois e o livro lá permanece, ninguém quer livros, muito menos usados. Conto à minha filha sobre o meu projecto com os livros usados e ela abana a cabeça num talvez que não mata a minha esperança.


Este tempo é agora tempo outro, tempo de ler e tempo de ver, ver para dentro e fora de mim. Tempo de parar, suspender a respiração para abraçar toda a brisa quente que correr para mim.


Até mais tarde.


~CC~

quarta-feira, julho 15, 2009

Reciclagem

M - Filha, estou doente hoje só de pensar na reunião de condomínio!
F - Não vás...
M- Então isso é assim, tenho responsabilidades a que não posso fugir...o que faria depois com a minha culpa?
F - Deitavas no ecoponto! :))) (riu-se muito).

(ora inventem lá um ecoponto com uma cor boa para reciclar culpas)

~CC~
+
~AF~ (13 anos)

Cinzas

Por legado paterno chegou a leitura dos sinais ocultos nos olhos, nas mãos, nas folhas do chá, em certos desenhos do céu. Mas fui má aprendiz, nunca acreditei o suficiente e por isso não treinei suficientemente o nariz para o odor a enxofre e outros sinais do mal. Ao bem sou mais sensível, sinto paz na sua presença e esse é o inequívoco sinal da confiança.

Pensava saber distinguir bem a mentira da verdade, as pessoas boas das más, o amor do ódio. E se nada quase resta dessa ideia de mundo, nem dos feitiços e magia que assombraram a minha adolescência (Borges e Garcia Marques elevados aos píncaros....), sobraram certas palavras que me ocorrem para designar factos. Por exemplo maldição, serve perfeitamente para designar um amor já morto mas agarrado a nós como uma lapa, um amor que já nem dói mas se afigura ainda como um luto interminável. Maldição, já não é sequer a pessoa em si, mas a memória do desastre que aquele encontro significou nas nossas vidas. É a certeza de que o que nos trouxe de mau foi tão incomparavelmente menor face ao que nos trouxe de bom, que um salto ao passado com uma borracha de apagar certos olhares no momento certo seria um acto inteligente. Maldição é o que não devia, nunca devia ter acontecido.


Costuma ajudar de trocar de cidade, de emprego, de amigos, até já nada nem ninguém nos poder evocar aquela memória e podermos finalmente respirar um dia realmente azul, realmente limpo. Mas nem sempre o podemos fazer, nem sempre. É preciso viver com uma dor que já não dói, com lágrimas que já não correm, com um coração que não bate vermelho ao ver o outro mas bate cinza. Um coração a bater cinza é uma coisa realmente triste.

E também nos dizem que tudo passa nos braços de um outro amor, mas não é assim, uma pessoa não serve para esquecer outra, um amor não leva o outro. Um novo amor é felizmente uma outra coisa, uma coisa que nada tem a ver com a que passou. È outro acordar, outra forma de beijar, é um dia claro e luminoso por si mesmo.
~CC~

segunda-feira, julho 13, 2009

Um desenho


Foi no Domingo que passei por ela, pela escola pequenina, duas salas onde o som do mar talvez se pudesse ouvir ainda.

Olhei-a e olhei-me vinte anos atrás, no espelho do carro bailaram os sonhos que tinha nessa altura. Imaginava-me professora primária numa escola de duas ou três salas, com um grande pátio e árvores a trazerem a sombra que precisaríamos para as conversas sentados em roda. Imaginava-me a envelhecer a educar os filhos dos pais que também tinham sido meus alunos. E nos meus tempos livres imaginava-me a fazer um trabalho comunitário em prol das artes, quaisquer que elas fossem. Não queria nada mais do que o que imaginava ser um mundo de paz, longe da ribalta, do tumulto, da erosão das pessoas e das coisas. Tinha, sempre tive afinal, essa ideia de proteger-me de alguma ameaça a que nunca soube dar nome, mas que habitará talvez um tempo que de tão primordial me está oculto.

E não foi nada disso que tive, não consegui nunca essa paz, esse adormecimento feliz entre jardins de cheiros e meninos de bibe, nunca cheguei sequer a ser propriamente uma professora primária, nos poucos anos em que o fui, era sempre isso e uma outra coisa.

Nem sei se há ainda essas escolas, essas vilas, essas aldeias. No outro dia contaram-me histórias de violência em terra de cavalos e touradas, monstros que habitavam as searas de milho e de melão onde eu imaginava histórias de encantar. O lugar que habito parece ser na sua aparência branca e soalheira também um lugar de paz e, no entanto, é um espaço habitado por tantas e tantas sombras.

Nada do meu percurso foi desenhado, planeado, sequer antevisto. É talvez por isso que espero ainda uma surpresa qualquer, um vento maior e doce.
~CC~

sexta-feira, julho 10, 2009

quinta-feira, julho 09, 2009

Os vírus globais


Há algum tempo que os vírus globais eram reais, mas ainda assim mais valia assobiar para o lado, e quanto mais eles viajassem para países pobres, melhor dormíamos. Foi assim com a SIDA.

Sabíamos que os vírus são capazes de cruzar fronteiras com a mesma facilidade com que antigamente os miúdos saltavam ao eixo. E agora respiramos medo e hesitamos entre nos barricarmos em casa cheios de latas de comida até que tudo passe, ou viajar directamente para o coração do risco, pensando que quanto mais depressa melhor e até há quem já faça contas à vida pensando que antes agora do que no Inverno. E até há quem, na melhor linha das conspirações ocultas, ache que ele nasceu no laboratório e foi devidamente encaminhado para vender muito antiviral.

Lá se vai a nossa racionalidade, presa frágil de um bicharoco devidamente baptizado. Pensavámos que isto da gripe fazer morrer gente era coisa da Idade Média e não da Era Tecnológica, e acontece-nos esta loucura.

Se conseguirmos conter essa loucura poderemos talvez superar isto, mas se não conseguirmos, tudo poderá descambar, a começar no que mais atemoriza todos em tempo de esperança: a crise económica a persistir. Lavem muito as mãos é o que nos dizem, como sempre a Saúde Pública a evidenciar que tudo reside na higiene. Mas há outra higiene com a qual ninguém se preocupa: a fragilidade mental do ser humano. E eu diria que é aí que tudo reside.
~CC~

terça-feira, julho 07, 2009

O tempo

A filha levou-a por arrasto, zangando-se com ela: mãe, não pode passar tanto tempo sem fazer as sobrancelhas! E ela lá foi dizendo que aos 65 anos isso importa já tão pouco, muito menos quando se mora numa aldeia e só se vê dias a fio o marido, já tão ou mais velho que ela. E é assim que se chega a velho, com esse cansaço interior de quem já não quer saber do estado do corpo, deixando crescer o cabelo, as sobrancelhas, as unhas, numa espécie de desconcerto que talvez não seja mais do que paz interior ou desencontro com as exigências do mundo.

Tive uma avó assim, enfiada dias a fio numa bata, com o cabelo despenteado e uma dentadura que raramente usava, abandonada para o mundo por uma solidão só dela. Não podia amá-la assim daquele modo como criança que era, envergonhava-me dela. E tenho uma mãe inteiramente diferente da mãe que foi a dela, aos 80 ela arranja-se mais do que eu alguma vez me arranjei, faz ainda a sua própria roupa por achar que nada lhe fica melhor do que o que sai das suas mãos. Nunca sai de casa sem pintar os lábios.

E olho às vezes o meu corpo a envelhecer, a pele perdendo o brilho, os músculos a perder a força, certas partes que parecem inevitavelmente mais redondas. Hesito. Por um lado é verdade que sem recorrer a operações estéticas apetecia-me aqui e ali estancar aquele processo de mudança, como se a sedução residisse verdadeiramente no número de rugas, nas partes flácidas, na firmeza do peito, no volume das ancas e todos os discursos que o negam não fossem mais do que engano. Por outro, sinto que poderei ao envelhecer concentrar-me no essencial, deixando o corpo entregar-se ao seu destino e que toda a sedução será já uma outra coisa, outro modo de ser, sinto que finalmente poderei estar em paz e gostar de mim como nunca gostei. Escreve-se muito sobre o amor, pouco sobre o modo como muda a forma como amamos e o que nos atrai no outro à medida que envelhecemos.

Lembro-me da Marguerite Duras que foi uma mulher bonita e que depois abraçou com paixão a velhice, era volumosa, cheia de rugas e usava uns óculos muito grossos. E ainda assim eu achava-a apaixonante, mas ela tinha o dom de ser rara. Vejo-me entre a minha avó abandonada ao esvair do tempo e a minha mãe lutando sempre contra o que o tempo roubou. Não me revejo em nenhuma delas.
~CC~

segunda-feira, julho 06, 2009

Desejo

Absorver o som das ondas e enrolar-me silenciosamente em mim como um búzio.
~CC~

sexta-feira, julho 03, 2009

Elas voam



Dizes que escrevo coisas tristes, talvez seja verdade. Mas necessito de escrever coisas tristes, partem delas borboletas azuis e quando elas voam espalham no vento a mágoa e bebem do céu a esperança, e quando poisam, já estão a sorrir.


~CC~

quinta-feira, julho 02, 2009

Semelhante

Pensava no seu corpo magro a lançar-se no espaço, alguma coisa que nunca fui e alguma coisa que nunca soube fazer. Pensava no seu cabelo apanhado e no modo como o meu, na sua lisura, se rebela quando o tento segurar. Pensava nos seus olhos grandes e espantados, dois bugalhos de luz, e no modo como os meus preferem baixar-se tantas vezes. Pensava no país que era o dela e que nunca gostaria que fosse o meu. Pensava no modo tranquilo como parecia viver sob os holofotes, coisa que me assustaria imenso. Pensava na sua morte, nas palavras que todos escreveriam sobre ela. E como durante todo este tempo apenas tinha visto um espectáculo seu, e dele guardava tão pouca memória. E foram as palavras dele* que criaram sentido para a tristeza que sem muita razão eu sentia, afinal ela fazia dançar o medo. Tinham sido essas as palavras de Pina Bausch para explicar a vontade maior de movimento e mais movimento. Era isso o que nos assemelhava, o que unia as nossas vidas, o que tornava para mim tão triste a sua partida. Artistas partem todos os dias e são magníficos. Mas havia qualquer coisa que para mim era especial nela.

São vidas de fazer dançar o medo, toda a vida, toda.

* Fernando Alves, nos seus sinais na TSF.